quarta-feira, 25 de novembro de 2009

nem sequer saudades...


"apenas a ternura que embrulhas numa careta de pressa.Desces as escadas. Metes-te no automóvel. Vais-te embora. Tu duro no interior de ti, como um punho fechado que estremece. Dizem que o coração é do tamanho de nosso punho fechado: se o abrisse tanta coisa fugia!
Sorri. Aconteça o que acontecer não páres de sorrir. E por amor de Deus não tornes a abrir o coração: como disseste acima, tanta coisa desataria a fugir"

maos impregnadas de nuvens II


"sou feito de cardos e há palavras que deixei secar dentro de mim ou a vida secou. Claro que vou escrevendo, vou respirando, até me acontece, às vezes orvalhar-me. Mas escondo. Dantes fechava-me à chave na casa de banho para nao me ver no meu desespero. Depois abria a porta e saía a assobiar. Há alturas em que assobiar custa imenso. Fazia um esforço, conseguia.
- Como estas?
Interrompia o assobio:
- Estou óptimo
e a noite levantava,sem que ninguém notasse, uma revoada timida de lágrimas.Podiam ser melros ou pombos ou assim, insistia
- São melros ou pombos ou assim
mas eram lágrimas. As lágrimas também podem fazer ninho nas árvores ou nas empenas dos telhados. E no entanto qualquer olhar me descerrava como se descerram dedos: pétala a pétala.
(...)
Tu, que nao conheço ainda, ou imagino que não conheço, ajuda-me a ficar. Ocupo pouco espaço, quase nao faço barulho, nunca grito, não incomodo ninguém. Leva-me contigo e ajuda-me a ficar. Tenho a ternura simples mas aos nós.Desata-me isto tudo..."

as tuas mãos impregnadas de nuvens..

"Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a agua. Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante 11 segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência. O melhor é encostar-nos à muralha, de queixo na palma, vigiar as gaivotas, dar fé da mudança de cor no horizonte e nisto, mal o 3º minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí està: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar. Tem de utilizar-se logo visto que no dia seguinte, a partir das 10, já o ar aqueceu. Puxa-se com cuidado do bolso e respira-se devagarinho. Quase sempre, então, os pinheiros estremecem e parece existir, nas mulheres da familia, uma especie de vontade de chorar. Não de tisteza, claro: do facto de existir para sempre, dentro delas, um búzio comovido."

lisbon sound

...quem me assassinou para que eu seja tao doce?...

" NAO PRETENDO SENAO O IMPOSSÍVEL: UM MENINO QUE ME ACENA, UM BARCO QUE CHEGA, MARTELAR COM A MAO ESQUERDA, SABER DANÇAR O TANGO, DISTINGUIR-TE AO LONGE, NO AEROPORTO, À MINHA ESPERA..."

terça-feira, 24 de novembro de 2009

NOS 2 AQUI A OUVIR CAIR A CHUVA


"- Dás pela chuva Henrique?
subo os olhos do jornal a acenar que sim, e ficamos a contemplar a janela onde as gotinhas escorregam, aclaradas do viés pelas lampadas do passeio. Pelo menos falámos. Pelo menos disseste
- Dás pela chuva Henrique?
pelo menos acenei que sim do jornal, pelo menos, por um momento, estivemos acompanhados. Somos pessoas discretas, incapazes de exageros, de conversas, de emoções inuteis. Julgo que foi isso que nos uniu, a timidez, a ausencia de lagrimas.Ainda Bem. Acho que ainda bem para nós.(...)
E depois existem momentos assim,a seguir ao jantar, em que principia a chover e nós aqui dentro, em paz, quase felizes.
E escrevo quase felizes porque para escrever felizes seria preciso que a chuva fosse tão forte que arrancasse o prédio do lugar e o arrastasse consigo na direcção do Tejo, o que, é evidente, não acontecerá nunca(...)
Como tu me explicaste umas coisas valem por outras e temos o consolo da chuva.Perguntar-me-ás
- Dás pela chuva Henrique?
acenarei que sim, e durante um momento somos dois, e durante um momento, palavra, podia escrever em nome de ambos, eliminando o quase, que nos sentimos felizes."

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Farto de voar, Pouso as palavras no chão...

EU, ÁS VEZES...

"(...)ficamos parados

a teimar no silêncio

(que silêncio tão grande)

– Já é tarde

e não é o relógio, somos nós

(...)

– Porque me tornaste nisto?

o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro

– O que foi?

e construímos peça a peça um sorriso

difícil

(custa tanto um sorriso)

que responda por nós

Não foi nada."

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

nunca parto inteiramente...

...anything your heart desires...

...anything your heart desires...

Os amantes

ESTAVAM juntos há muitos anos. Tantos que, apesar das anteriores mulheres dele, ninguém aceitava que esta não fosse senão a única. Eu gosto quando o amor nos dá identidade mesmo que roube a nossa. O amor é tão bom e chega tão sedento, tão faminto, que se continua em nós rouba-nos tudo. Mas quando nos deixamos roubar é porque acreditamos. E felizes dos que acreditam…

Ele era um homem daqueles metidos para dentro: moderno por fora, mas tradicional ao mesmo tempo. Eu tenho muitos amigos assim. Há coisas que eles não conseguem mudar. E agora também não se luta contra os hábitos da idade.

Ela apareceu e rondou-o muitos dias, meses até. Era uma mulher especialmente bonita. Olhos azuis, pele muito clara e cabelo dourado. Quando eles se apaixonaram há muito tempo, ainda não havia aquela parva ideia de as loiras serem burras. Esta coisa de se subestimar as loiras irrita-me: é uma forma de as castigar só porque as falsas se permitem à frivolidade e as verdadeiras têm de ser penalizadas por serem bonitas sem artifícios.



QUANDO caíram nos braços um do outro nunca mais se largaram. E olhem que ela não se vestia como ele, nem ele como ela. No entanto, ouviam a mesma canção e tudo neles, como a água no rio, corria num só sentido.

Assim ficaram anos, décadas. A vida ligada por um fio e eles em cada uma das pontas. Às vezes, os que estão de fora até temem por um amor assim, com medo que um dos lados quebre e o outro nunca mais se equilibre. Mas as pessoas não podem, não devem, dizer dos receios que crescem nelas, ou isso estragaria a vida e a paixão.

Os dois cresceram com o amor que os unia. Não os tendo acompanhado, julgo que ele, o homem áspero, foi amaciando o coração com o mel que ela lhe trazia, e ela, mesmo vendo às vezes a aspereza nele, sorria, porque quem tem mel não quer doce (ou o amor tornava-se numa grande dor de barriga). Que o amor seja só uma grande dor no peito.

ELA ensinou-o a gostar de coisas que antes – a ele – lhe pareciam ridículas. E primeiro ele rejeitou-as até se permitir encaixá-las na sua vida. Eu gosto disso no amor: quando cedemos. Quando nos vergamos para aceitar o inaceitável. É normalmente nessas alturas que descobrimos grandes paixões. É nessas alturas que nos ouvem dizer: «Nunca pensei gostar tanto disto»... O amor traz-nos essa flexibilidade. Os que nunca se vergam acabam duramente sozinhos.

Ele também a ensinou a gostar de coisas diferentes das do mundo dela: não nós de pesca ou truques da sueca mas coisas dos discos e dos livros. Foi só ele estender-lhe a primeira pista e, não muito tempo depois, já ela o estava a ultrapassar com a sua aprendizagem. Quando as pessoas se amam muito é porque têm orgulho uma na outra, senão misturava-se a compaixão e a compaixão não é motor que faça o amor andar. Quando há esse amor grande, as pessoas insistem em surpreender-se. Ela passou a levar-lhe livros para casa de que ele nunca ouvira falar, e ele conquistava-a com mais uma música, mais uma voz que ela deixava chegar ao coração.



TIVERAM filhos, cães, férias de sol, viagens, e trabalharam muito para poder ter dinheiro. O dinheiro é importante para que o amor não se torne uma coisa coitadinha. E sobretudo para prescindir dele e escolher a paixão.

Mesmo no trabalho eles arranjaram maneira de se cruzar, de se misturar, de nos confundir com as suas identidades. Ambos movidos por uma força qualquer que não se percebia se era a que resultava dos dois, ou se cada um deles era assim generoso e destemido na partilha.

Foi tudo rápido e inesperado: ele morreu há dias. E a ouvi-la a recordá-lo foi como se ele nunca tivesse sido áspero ou arredio. É sobre o Amor que se tem de escrever, porque do menos nobre estão os jornais cheios.
Cidália Dias
(in NS de 07.10.09)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

...devia ter sido capaz de advinhar toda a ternura escondida por detrás daquelas pobres manhas...

A contas com o bem que tu me fazes...

O PACEMAKER

"Quando duas pessoas estão à beira da ruptura, o que é que podemos fazer por elas? A questão surgiu depois da conversa com um amigo prestes a separar-se. Eu achei que o podia ajudar convidando-o a distrair-se, mas depois dei comigo pensando no que realmente poderia fazer.

Não acho que se possa fazer grande coisa. Se incentivamos um deles a separar-se, teremos o outro à perna o resto da vida (embora às vezes, mais tarde, também nos agradeçam). Se os tentamos convencer a continuarem juntos, afundamos o sofrimento de ambos, levando-os a pensar que há algo de errado em cada um deles, quando antes só havia perfeição… Os amigos, nós, os outros, são de evitar, a não ser que precisemos deles para ir comprar um novo enxoval. Acreditem que os amigos aparecem e desaparecem em altura de mudanças. Só os bons ficam.

Entre homens há muito aquela máxima do «tu precisas é de te divertir». E lá vão eles, errando pela noite, deixando rasto de pieguice disfarçado de virilidade. Metem-se com mulheres, saem, jantam fora em sítios que impressionam, compram roupa nova, descobrem que há vida para além das quatro paredes do T3 pago com muito esforço. Uma noite, por motivos vários, ficam em casa sozinhos e o mundo cai-lhes em cima.



COM AS MULHERES também não é muito diferente. Talvez o rasto de pieguice não seja disfarçado e talvez elas criem mais ilusões onde antes só havia uma certeza: que o amor delas tinha acabado. As mulheres ficando uma noite sozinhas, de agenda aberta e guloseimas escancaradas, também vão sofrer, mas elas sempre sofreram.

Quando há muitos anos me separei, fiz o meu caminho. Conheci fanfarrões e piegas. Atirei-me aos tipos errados, fui inconveniente quando só queria ser ouvida.

Fazem-se muitos erros nesta altura. Até porque ninguém tem o conselho certo para nos dar. Andamos, vagueamos à espera de encontrar alguém ou alguma placa que nos diga o caminho certo, mas isso nunca vai surgir. O labirinto é coerente: vamo-nos perder até ao fim. No fundo, só queríamos saber se ficamos ou se seguimos em frente com a nossa vida mas a resposta revelar-se-á muito mais complexa do que alguma vez sonhámos.

Os amigos terão sempre a tentação de nos puxar para jantares com gente «interessante» e que «tem tudo que ver contigo». Mas eu acho que nós precisamos é de silêncio. O silêncio, que tanto magoa, tem essa vantagem de nos fazer ouvir (e ver?) com muito mais nitidez. Nós às vezes não conseguimos é ouvir o eco da nossa dor. E a parcialidade do sofrimento nunca nos levou longe.



ESTA É a fase em que as músicas parecem ter sido escritas para nós e os filmes nos parecem uma grande ilusão onde no entanto todos queremos morar. O mundo conspira contra os corações vulneráveis. Normalmente, nesta altura também podem surgir gastos inesperados: pequenos incidentes domésticos ou fiscais que nos levam o resto da dignidade que ainda havia em nós. A vantagem de tudo isto é que a seguir só podemos renascer.

Quando os amigos separados vierem queixar-se da metade correspondente, o melhor é não lhes dar ouvidos: tudo o que nos disserem vai fazer parecer que o outro ainda deseja esta parte – ainda que já esteja a milhas num spa acompanhado…

Eu acho que aos amigos na encruzilhada do amor se deve dar aquilo para que eles não têm disponibilidade: a funcionalidade da vida. A incrivelmente mesquinha ordem dos dias que garante a nossa existência comum. Por isso é que podemos ir comprar o faqueiro, as tintas, a louça de casa de banho e tudo o resto que a cabeça dorida dos nossos amigos não consegue suportar. Se depois disso eles ainda quiserem sair e beber um copo, vamos com eles, mas não se esqueçam que um coração precisa de sentir a dor para voltar a viver.

Oh God, make me good, but not yet!"

in O sexo e A Cidália - Cidália Dias

GAIVOTAS PEQUENINAS NA FOZ DO DOURO





ULTIMA CRONICA DO ALA in Visão 22.10.2009



As gaivotas pequeninas regressaram à foz do Douro, há sol outra vez, estamos na muralha a olhá-las.
Desta feita nunca mais desaparecerão dos penedos de que mal se distinguem e mesmo que o mar as leve permanecerão ali. Tentei matá-las e resistiram, tentei esquecê-las e não as perdi nunca. Passaram todo este tempo dentro de mim, à espera que as devolvessem ao lugar que é o seu, lá em baixo na salsugem.

Tonto de sol vejo-as caminhar, perco-as, recupero-as, não se vão embora: existem para sempre, como um testemunho escrito a sangue na carne, um nome que não se apaga, uma presença infinita. Não crescerão: quero-as assim, depois de tanta tempestade interior, tanta cobardia, tanto medo. Nenhuma névoa, nenhum medo já: as palmeiras e as gaivotas pequeninas chegam-me como penhor.

As pessoas na esplanada do restaurante nem as vêem: ocupam-se a comer, a conversar, não as conhecem, não dão por elas sequer. E que paz de silêncio no interior das ondas, que fervor de alegria. Cheguei. Finalmente cheguei. Quase sem palavras e sem gestos porque as palavras e os gestos inúteis: basta este simples milagre, esta pureza silenciosa, este fervor de alegria. Tudo tão fácil, afinal, quando se olha o mundo de frente, que evidência tão clara. As mãos no rebordo nem precisam tocar-se para que a viagem comece. Basta esta proximidade, este rumoroso silêncio, o vento: as gaivotas pequeninas na foz do Douro sabem-no, não brancas, cinzentas e o cinzento mais branco que qualquer outro branco, uma exaltação mais funda que a do corpo, tatuado de unhas ao comprido da tarde, braços em cruz de dedos cravados nas almofadas, olhos de pura água que se abrem devagar, um sangue vivo que canta.


Não há dia mais dia que este dia, não há noite mais noite que esta noite, e as gaivotas pequeninas na dobra do lençol. Nada dói, nada ofende, nada magoa.

Beijar o sol na boca, abraçar os limos, tocar no ar que nos atravessa a garganta. Casas lá para trás, tão longe. As pessoas na esplanada longíssimo também: só as gaivotas pequeninas perto, só este sol, este vento, o escapulário já sem imagens que trago no pescoço. Caminha-se, sem peso, na luz, nem sequer é necessário reinventar o mundo: permaneceu ali desde sempre, à espera. Agora tenho-o fechado na mão, a minha vida pertence-me, não tornam a roubar-ma.
Um automóvel debaixo de uma ponte, à espera, a doce violência de um sorriso, tudo, ao mesmo tempo, lento e rápido, o milagre das línguas, o umbigo prateado.


O meu irmão diz que tenho unhas de puta
e, meu Deus, o que as unhas de puta conseguem. A ferida da ausência até ao osso:

- Como é que estás vestida?
- Ténis pretos, calças pretas, camisola preta
- Como é que estás vestida?
- De toga no alto das escadas
E, por baixo da toga, gaivotas pequeninas, o mar da foz do Douro, os penedos, a mulher, com duas canas de pesca enterradas na areia, a limpar a praia.
- Adoro as tuas unhas de puta
como adoro a cabeça de perfil e os olhos fechados, o modo de dizer
- Minha riqueza
os dentes no meu ombro. Tudo treme no vento e se refaz, tudo se desarticula na água e permanece inteiro, os teus pés descalços nos pedais do carro, os calcanhares, um após outro, no apoio do lavatório para o creme das pernas, os pontinhos brancos que distribuis pela cara antes de os espalhar, o secador levantando o cabelo molhado, o modo de apertar o soutien nas costas numa habilidade de contorcionista, o nariz franzido vasculhando o frigorifico, uma joaninha num ramo de rosas, o modo rápido de lidar com os objectos e nisto, de repente, a surpresa de uma ternura vagarosa, ávida, os bicos do peito a crescerem, a mansa ferocidade dos dentes.
As gaivotas pequeninas regressaram à foz do Douro, há sol outra vez, estamos na muralha a olhá-las. Desta feita nunca mais desaparecerão dos penedos.